O Monotropismo na prática
Creio que a melhor forma para compreender as mentes autistas é através de um estilo próprio de pensamento que tende a concentrar os seus recursos num pequeno número de interesses e preocupações de cada vez, em vez de os distribuir amplamente. Este estilo de processamento, o monotropismo, explica muitas características da experiência autista que podem inicialmente parecer confusas, e mostra como estão ligadas. Quero apresentar-vos seis pontos de partida que dão sentido ao autismo.
Estou aqui a escrever na primeira pessoa, como um adulto autista identificado tardiamente, que trabalhou e falou com muitas outras pessoas autistas em vários contextos ao longo de muitos anos. Acredito que tudo o que descrevo aqui é uma experiência comum para a maioria das pessoas autistas, mas não necessariamente universal. Muito será também partilhado, em diferentes graus, por algumas pessoas não autistas – existem questões muito interessantes acerca do grau de sobreposição entre os diferentes estilos de pensamento; os cérebros são realmente muito diversos e a classificação psicológica é uma tarefa complicada. As referências, revisões de investigação e outros recursos para cada secção aparecem no final.
1. É difícil lidar com múltiplos canais
Podem ser canais sensoriais ou outros fluxos de informação.
Isto manifesta-se de muitas formas; algumas das mais óbvias, são sociais. Se a minha atenção estiver concentrada noutra coisa, posso não ser capaz de assimilar o que está a ser dito. Se estiver concentrado no que está a ser dito, posso não ser capaz de fazer mais nada (ou posso necessitar de fazer outra coisa que absorva o excesso de atenção).
A maioria das pessoas parte do princípio de que existem vários canais de comunicação em qualquer conversa: palavras, tom de voz, gestos e contacto visual. Pressupõem também a capacidade de ter em mente várias outras coisas aquando de uma conversa: contexto social, regras sociais, factos relevantes. Isto funciona na maior parte do tempo, para a maioria das pessoas, mas, causa uma confusão sem fim nas conversas entre pessoas autistas e não autistas. Esteja preparado para mal-entendidos, em que alguém perdeu um ou mais dos canais que pensava estarem a transmitir informação.
Saiba que os estilos de comunicação dos autistas, pela mesma razão, tendem também a ser diferentes. Espera-se que mantenhamos múltiplos canais de comunicação em configurações socialmente aceitáveis em todos os momentos, apesar de nos escaparem muitas pistas não verbais ao longo das nossas vidas. Muitas vezes, é necessário um esforço consciente para nos emocionarmos “adequadamente”, exibirmos a linguagem corporal esperada e suprimirmos a urgência de nos regularmos com movimentos que as pessoas podem considerar estranhos… tudo isto enquanto tentamos certificar-nos de que não dizemos nada de estúpido. Aprender a fazer tudo isto pode ser uma competência social valiosa, mas exige muito de uma pessoa e nem sempre funciona. Se quer que alguém consiga relaxar, essa pessoa tem de se sentir à vontade para ser ela própria – mesmo que a si lhe pareça estranho. Aprenda a ler a nossa linguagem corporal o melhor que puder, mas tenha em atenção que a maioria das pessoas se engana frequentemente.
2. A filtragem é complicada e propensa a erros
Por vezes, não consigo sintonizar as coisas, outras vezes filtro-as completamente.
A filtragem é um processo ativo e torna-se muito menos eficaz quando os nossos recursos são consumidos por outras coisas. Isto significa que os nossos filtros tendem a estar mais vulneráveis quando estamos desgastados ou temos de manter as aparências. Qualquer trabalho efectuado para filtrar os estímulos indesejados deixa menos energia para tudo o resto.
Ser incapaz de filtrar pode ser profundamente desconfortável, especialmente se isso o estiver a impedir de se concentrar em algo que deseja fazer. Por favor, cuide do ambiente sensorial: demasiado barulho, confusão e estimulação podem ser cansativos, dolorosos e impeditivos em termos de trabalho. Por vezes, ajuda imenso poder passar algum tempo num ambiente em que possamos controlar a influência sensorial e não ter de filtrar nada durante algum tempo.
Alguns dos momentos mais satisfatórios, relaxantes e produtivos são quando conseguimos entrar num estado de fluxo, com a nossa atenção completamente absorvida numa atividade. Nessas alturas, podemos filtrar quase tudo o resto. Se não conseguirmos livrar-nos de distrações suficientes no início, torna-se impossível atingir esse estado.
3. Mudar de caminho é desestabilizador
A mudança de tarefas é difícil e os novos planos dão trabalho.
É preciso tempo e esforço para começar, para mudar de direção ou para parar. Por outras palavras, o pensamento autista tende a ter muita inércia: resiste a uma mudança de estado.
Isto pode ser ótimo para resolver puzzles lógicos complexos, estudar grandes coleções de factos ou simplesmente ficar intensamente absorvido em qualquer coisa, mas pode também ser muito inconveniente. Tirar todas as nossas gavinhas de pensamento de uma coisa e direcioná-las para outra leva muito mais tempo do que para muitas pessoas e, por vezes, é difícil fazê-las ir para onde queremos – quanto mais para onde as outras pessoas querem. Deem-nos avisos, deem-nos tempo, deixem-nos recuperar.
Não esperem uma transição instantânea de uma coisa para outra, especialmente se for inesperada. Já é difícil mudar de caminho, mesmo quando sabemos o que nos espera. Uma mudança repentina de planos significa que temos de nos reiniciar completamente e descobrir como lidar com tudo o que está relacionado com as novas circunstâncias.
4. Costumo viver as coisas de forma intensa
Normalmente, são coisas relacionadas com as minhas inquietações e interesses.
Quando a minha atenção está totalmente focada numa coisa, o meu cérebro parece lançar tudo o que pode sobre essa coisa. Atribuo a isto o facto de os meus sentidos parecerem muitas vezes mais intensos e minuciosos do que os da maioria das pessoas. De um modo geral, quando estou absorvido pelos meus interesses, parece-me que consigo tirar mais proveito disso do que a maioria das pessoas; penso que isto está relacionado, mais uma vez, com os estados de fluxo.
Por outro lado, informação inesperada, por vezes, abala-me muito. Pode ser algo súbito, ou apenas algo que não parece encaixar; seja como for, não consigo ignorar. Foi sugerido que a principal diferença nos cérebros autistas é o facto de terem a sua configuração de “surpresa” ligada no máximo; pergunto-me se a nossa tendência para a surpresa intensa resulta do facto de termos menos interesses ou filtros ativos num dado momento e de acharmos o inesperado mais chocante devido à intensidade da nossa concentração.
De resto, um dos efeitos secundários de sermos surpreendidos muitas vezes, é o facto de nos habituarmos a isso. Já vi muitas vezes pessoas autistas parecerem menos surpreendidas com coisas que parecem chocar as outras pessoas.
5. Estou sempre a voltar aos meus interesses e inquietações
É difícil deixar cair as coisas.
Faz parte da natureza dos interesses e das inquietações, que regressemos a eles. Quando estamos interessados em algo, é provável que tudo em nosso redor contribua para atrair a nossa atenção para esse assunto. As mentes monotrópicas tendem a ser puxadas de volta para os mesmos circuitos de inquietação, vezes sem conta, especialmente quando têm questões por resolver. As pessoas são terrivelmente confusas e, por isso, têm muitas perguntas sem resposta. Por vezes, uma pergunta pode já ter sido respondida de forma adequada, mas ainda sentimos que não é bem assim, e por isso necessitamos de voltar a colocá-la. Outras vezes, as pessoas são simplesmente impossíveis de prever e não há forma de ultrapassar essas preocupações. Estas coisas podem assombrar-nos durante anos, e carregá-las connosco, dia após dia, pode realmente esgotar a nossa energia.
Juntamente com as sensibilidades sensoriais, este é um dos principais fatores que contribui para os problemas de insónia que afetam a maioria das pessoas autistas.
Ainda assim, gosto do facto de as coisas serem tão interessantes. O fascínio é uma coisa divertida e ainda bem que as pessoas raramente tentaram dissuadir-me dos meus fascínios. Gosto de resolver as coisas e de aprender coisas novas, mas também gosto simplesmente de, por vezes, perder-me nas coisas. Por vezes, as pessoas ficam perplexas com o tipo de coisas que gosto de fazer e aprender, mas quem perde realmente são elas.
6. As coisas que caem fora da minha atenção, tendem a ficar esquecidas
Posso precisar de lembretes.
Preciso mesmo de algum tipo de mecanismo para garantir que as coisas em que é suposto pensar, voltam a estar sob a minha atenção. É tão difícil manter o controlo sobre várias coisas ao mesmo tempo que acabo por deixar cair algumas delas, se não me lembrarem na altura certa. Isto é complicado pelo facto de que, quando estou a meio de uma coisa, não quero ser arrancado do meu túnel de atenção, por algo que, possivelmente, posso adiar.
Isto significa que os outros podem esperar que eu esteja a pensar em todo um leque de coisas, mas eu posso não estar, a não ser que esteja a receber os estímulos certos. Isto, diga-se, inclui coisas com as quais me preocupo genuinamente; espero que ninguém presuma que sou indiferente às coisas só porque não consigo pensar nelas. É que tenho tantas outras coisas a acontecer na minha cabeça!
Entendo todas estas características como manifestações de um estilo de pensamento monotrópico: quanto mais um cérebro concentra os seus recursos num pequeno número de interesses e inquietações, mais devemos esperar que estes sejam verdadeiros. Outras teorias podem prever e explicar muitas destas mesmas características (ver abaixo), mas não tenho a certeza de que qualquer outra teoria nos conduza a todas as mesmas previsões.
Todas elas,tomadas em conjunto, acrescentam algo a um mundo com o qual pode ser muito difícil de lidar, e cada uma delas contribui para os perfis de competências específicas das pessoas autistas. Não é de admirar que tantas pessoas autistas sofram de ansiedade excessiva, confusão e sobrecarga. A nossa capacidade para a fruição e a concentração pode ser uma compensação para este facto, mas é muitas vezes difícil orientarmo-nos num mundo dominado por pessoas com cérebros relativamente típicos. Se as pessoas não conseguem ou não querem compreender e acomodar as nossas necessidades, os problemas acumulam-se. O desconforto pode aumentar cada vez mais, até termos de fugir, sob pena de entrarmos em rutura (meltdown) ou desligarmos (shutdown). Isso pode durar bastante tempo, e é, tão frequentemente, evitável. Espero que o que descrevi constitua um bom ponto de partida para trabalhar nesse sentido.
Com as estratégias corretas e a compreensão necessária, a maioria das pessoas autistas pode prosperar. Sem elas, a vida pode ser incrivelmente difícil, e muito do que temos para dar ao mundo, simplesmente perde-se. Não mudaria muita coisa no meu cérebro – gosto sobretudo de ser quem sou. Gostaria, no entanto, de mudar muitas coisas neste mundo e na forma como ele lida com as pessoas que pensam de uma forma diferente.
Se alguma destas informações o ajudar a encontrar um sentido para as coisas, ou se mudar a forma como se relaciona com as pessoas autistas que conhece, teria todo o gosto em ouvi-lo. Mais importante do que isso, por favor, diga-me se há alguma coisa aqui que não lhe soa a verdade! Estas ideias estão a ser desenvolvidas com empenho, por mim e por outros. É possível que estejamos a entender mal algumas coisas, e há certamente coisas que ainda não resolvemos completamente. Uma das coisas que mais me interessa é perceber o que tudo isto significa para os professores, o que levou à publicação de Dicas sobre Autismo para Professores, na Tes (Magazine).
Investigação, referências, recursos
Escrevi, com algum pormenor, sobre como o monotropismo explica as características observadas do autismo em “Eu e o Monotropismo: Uma teoria unificada do autismo” para o The Psychologist. Identifiquei pela primeira vez estes seis pontos de partida específicos para compreender o autismo em ‘Teorias e Pratica no Autismo’.
Há trabalho empírico a ser feito para determinar até que ponto a maioria das pessoas autistas sente que estas descrições se lhes aplicam – cuidado com as “anedatas”, e tudo isso. Até ao momento, a melhor prova concreta do Monotropismo como teoria do autismo é, provavelmente, a tese de doutoramento não publicada de Julia Leatherland, “Compreender como os estudantes autistas experienciam escola secundaria“, que concluiu que o Monotropismo explicava mais experiências relatadas pelos alunos do que qualquer outra teoria. Acredito que as características básicas que aqui descrevo, são todas bem sustentadas, tanto pela investigação psicológica, como pelos testemunhos de escritores autistas, mas o Monotropismo, enquanto teoria, continua a clamar por trabalho experimental.
Seguem-se notas para cada um dos meus pontos de partida.
- Embora tenha sido necessário esperar pelo DSM-5 para que as diferenças a nível de percepção fossem incluídas nos critérios de diagnóstico, a dificuldade em lidar com múltiplos fluxos sensoriais é referida desde os primeiros estudos sobre o autismo. Em 1971, Lovaas et al não foram já os primeiros a registá-lo, e para uma revisão sistemática, ver Marco et al (2011). Mongillo et al (2008) descobriram que as dificuldades no processamento da fala -porventura sem surpresa – estavam associadas a dificuldades sociais, e inclui o facto divertido de as pessoas autistas serem muito menos suscetíveis ao Efeito McGurk.
- É sabido que a filtragem é um processo cognitivo ativo, que evita que a mente consciente seja sobrecarregada com demasiados dados. À luz do modelo de Codificação Preditiva da mente, grande parte daquilo que o nosso cérebro faz, pode ser visto como uma filtragem: os processos não conscientes trabalham na previsão da entrada de dados e só o que não conseguem prever é que chega à consciência. Ver Friston & Kiebel (2009) para uma descrição técnica, e Van de Cruys et al (2014), para mais informações sobre a ideia do autismo como sendo uma manifestação de surpresa excessiva. O vídeo de Karl Friston sobre a corporização (embodiment) e o livro de Andy Clark, Surfing Uncertainty, são ambos excelentes introduções a esta abordagem geral da cognição, abordando um pouco a forma como atualmente esta abordagem procura compreender o autismo. Parece natural esperar que a filtragem consuma energia, no sentido de exigir e esgotar recursos cognitivos. Até à data, apenas encontrei investigação que explora este aspeto, mas não num contexto específico do autismo: Drummond et al (2012) descobriram que a privação de sono reduz a capacidade de filtragem visual; Hasson et al (2013) descobriram que uma combinação de exaustão emocional e stress reduziu a tolerância a sons altos.
A National Autistic Society tem uma página muito boa sobre o autismo e os sentidos em geral. Sobre os estados de fluxo no autismo, ver Milton (2017) e também este vídeo de Damian Milton.
- Normalmente, fala-se disto como um aspeto da função executiva, que tem sido extensivamente estudada com referência ao autismo – ver, por exemplo, Hill (2004), e ocasionalmente apresentada como uma explicação subjacente a toda a cognição autista – ver Russell (ed.) (1997). Como escrevi em Autismo e Funções Executivas, considero-a pouco convincente como uma teoria global do autismo e um instrumento um pouco brusco para descrever dificuldades particulares, mas continua a ser uma ideia importante.
- Um aspeto central da teoria do Mundo Intenso (Markram et al 2010), sobre o autismo, e que tem pontos importantes em comum com a teoria do Monotropismo, são as experiências intensas. Estranhamente, os seus proponentes baseiam-se num modelo de autismo em roedores. Remington & Frith (2014)apresentam algumas críticas muito convincentes, incluindo o facto de que, ao contrário do monotropismo, esta teoria só parece explicar a hipersensibilidade no autismo, sendo que a hipossensibilidade também é comummente relatada. Mottron et al (2006) escrevem sobre o funcionamento perceptivo melhorado no autismo, apoiando a impressão de que o input sensorial é frequentemente mais rico e mais minucioso nas pessoas autistas.
- Apesar de os interesses “restritos” serem uma caraterística constante das narrativas sobre o autismo desde o início, a natureza e o papel dos interesses autistas têm sido consistentemente negligenciados em termos de investigação, não sendo devidamente tidos em conta pela maioria das teorias do autismo. Grove et al (2018, )no entanto, apresentam um estudo que demonstra a conclusão surpreendente de que, perseguir as suas paixões, é um fator positivo para o bem-estar das pessoas autistas. Os interesses específicos das pessoas autistas são muitas vezes designados por “interesses especiais”, o que não é negativo, desde que se pense na linha dos Grupos de Interesse Especial no domínio da tecnologia, mas não se se pensar neles como uma coisa estranha e incompreensível dos autistas, que provavelmente seria melhor suprimir. De um modo geral, prefiro o termo “paixão”.
No que respeita à ansiedade, Wigham et al (2014) encontraram ligações intrigantes entre a ansiedade e os comportamentos repetitivos. Ambos podem ser vistos através da lente da perseverança, tal como a forma como regressamos aos nossos interesses. A ideia de que a ansiedade autista está frequentemente associada a dificuldades sociais está bem estudada – ver, por exemplo, White e Robertson-Nay (2004).
- Esta é outra coisa que é normalmente discutida sob o título de “disfunção executiva”, não de forma muito informativa. Mazfinch no Twitter tem uma lista útil de possíveis sistemas de lembrete.
AgradecimentosO meu parceiro Sonny Hallett contribuiu muito para a minha reflexão sobre tudo isto e cunhou a útil expressão “circuitos de inquietação“. É também ele que aparece na fotografia em cima, com uma excelente camisola de dinossauro. Os conceitos subjacentes foram em grande parte formulados pela minha mãe Dinah Murray, com Mike Lesser e Wenn Lawson. Damian Milton, Nick Chown e Richard Woods também contribuíram significativamente para a minha compreensão.